terça-feira, 30 de junho de 2009

Nova tradução de Berlin Alexanderplatz

ESTADÃO DE HOJE/CADERNO 2
Domingo, 14 de Junho de 2009

Berlin Alexanderplatz volta renovado

O mais incômodo épico da literatura alemã do século 20, Berlin Alexanderplatz, obra-prima do médico e escritor Alfred Döblin (1878-1957), ganha, aos 80 anos, uma nova tradução, a cargo da professora de Literatura Irene Aron, que a Editora Martins/Martins Fontes coloca nas livrarias no começo de julho. O livro, já traduzido anteriormente por Lya Luft, volta às livrarias num momento de crise, o de uma recessão cada vez mais desestabilizadora, que ameaça empurrar para o precipício países fragilizados, exatamente como aconteceu no passado com a Alemanha, tomada de assalto pelos nazistas. Em mais de uma ocasião - e com justa razão -, a atual crise financeira do mundo foi comparada ao inferno de Wall Street em 1929, ano do grande crash da Bolsa - e também da chegada de Berlin Alexanderplatz ao mercado, após sua publicação em folhetim ter sido recusada por dois dos principais jornais liberais de Berlim.

Leia trecho do livro

Se a crise atual ainda não atingiu as proporções gulliverianas da República de Weimar, onde a inflação corroeu salários e também a alma dos alemães, é certo que ela já oprime milhares de desempregados, que experimentam hoje o que sentiu no passado o operário e carregador de mobílias Franz Biberkopf, protagonista de Berlin Alexanderplatz. Biberkopf, ao sair da prisão de Tegel, após cumprir pena de quatro anos por matar a companheira num acesso de raiva, tem como primeiro impulso voltar para sua cela, ao se defrontar logo na saída com uma Berlim irreconhecível, afundada na corrupção, no fanatismo político e na recessão. Nessa Babilônia moderna, qualquer ser resgatado pelo colete salva-vidas de ideologias totalitárias teria o rosto de um Franz Biberkopf, parece martelar na consciência o épico de Döblin, escrito quando Hitler já mostrava suas garras.

Döblin, claro, não teria feito Biberkopf passar pela provação de vender nas ruas o principal órgão de propaganda nazista (o jornal Völkischer Beobacher) se não quisesse discutir a diabólica sedução do totalitarismo quando se está só e desamparado. Entre os inúmeros bicos que o protagonista arranja para viver uma vida decente - de camelô a vendedor ambulante de cadarços -, nenhum lhe oferece sequer a chance de sobrevivência. Com o bolso arruinado, ele se entrega à bebida, retoma contato com amigos marginais, perde um braço durante um roubo e vira gigolô. O resto da história é uma descida aos infernos que só poderia mesmo ter sido transposta para o cinema pelo cineasta Rainer Werner Fassbinder em sua memorável série de 15 horas. Feita em 1980 para a televisão alemã, ela está disponível numa caixa com 6 DVDs, lançada recentemente pela Versátil (veja texto nesta página).

O filme, que tem o mesmo título do livro, é uma adaptação fiel do romance, mesmo em seus momentos mais alucinados, entre eles o surrealista epílogo em que Biberkopf, morto e guiado por dois anjos, reencontra no (sub)mundo dos espíritos os infelizes com quem topou em vida. No livro, esse delírio começa no momento em que Biberkopf entra na segunda instituição a mantê-lo preso, o manicômio de Buch - no qual morre e depois é "ressuscitado" por Döblin, que, na vida real, passou por lá como médico. No capítulo final, o autor dá uma segunda chance a seu protagonista, rebatizando-o de Franz Karl Biberkopf para distingui-lo do primeiro Biberkopf, oferecendo a ele um emprego de auxiliar de porteiro numa fábrica de porte médio, após sua saída do hospício. Para lá o catatônico Biberkopf é encaminhado depois que sua companheira Mieze é assassinada pelo perverso amigo Reinhold, outro parceiro amoroso do protagonista, responsável pelo acidente que o tornou maneta.

Dito assim, corre-se o risco de confundir Berlin Alexanderplatz com um romance que cruza o realismo de Balzac com a crônica mundana. De fato, a origem desse épico pode ter sido uma simples notícia policial perdida nos jornais populares citados no livro, ao lado de textos publicitários, canções e versos bíblicos, fielmente transcritos nessa "montagem" - como Walter Benjamin definiu o livro. Nela, o personagem principal não é Franz Biberkopf, mas a cidade que o destrói - e, mais exatamente, Alexanderplatz, praça central e local de confluência de todos os deserdados alemães na época do advento do nazismo. Döblin, assim, opta por dar voz a seus personagens, abdicando do papel de narrador. Trata-se de um exercício polifônico que não dispensa o recurso joyciano do monólogo interior - embora Döblin sempre tenha afirmado que conhecia mal a literatura de James Joyce quando começou a escrever Berlin Alexanderplatz. Pode ser. O fato é que seu livro, escrito no auge do expressionismo alemão, cruza referências eruditas e linguagem coloquial para narrar a história de um homem em busca da sobrevivência, amalgamando sua tragédia com a de um país que perde o pudor para pagar suas dívidas de guerra, resgatar a autoconfiança e fugir do colapso econômico.

A tradutora Irene Aron, nascida de pais alemães emigrados durante a 2ª Guerra, lembra de algumas expressões populares presentes no livro, ainda usadas em família durante sua infância. Isso facilitou o complexo trabalho de tradução, que obriga os profissionais a uma pesquisa exaustiva sobre a cultura de Weimar. O mais difícil, porém, foi encarar a natureza polifônica de Berlin Alexanderplatz. "Por vezes fica-se sem saber se é o narrador ou o próprio autor que está falando", diz a professora, que enfrentou anteriormente o desafio de traduzir Passagens, a obra-prima póstuma de Walter Benjamin.

Benjamin, aliás, escreveu sobre a retomada do relato épico em Berlin Alexanderplatz (em A Crise do Romance, de 1930), afirmando que o princípio estilístico do livro é a montagem, que, longe de ser arbitrária, baseia-se no documento - daí a exata reprodução das letras das canções populares da época, as estatísticas e os versículos bíblicos que conferem autenticidade à ação épica da narrativa de Döblin, segundo o estudioso. E não só autenticidade. Por respeito à tradição épica, o confronto de Franz Biberkopf é com a polis e a morte. Primeiro, ele enfrenta as barreiras da metrópole para depois chegar à fronteira da vida, submetido aos fragmentos do Livro de Eclesiastes usados por Döblin em sua obra. Biberkopf, paradoxalmente, é salvo pela morte ao aceitar, no fim de sua trajetória, que ele, somente ele, é o culpado por todos os males que o atingiram. O homem comum de Döblin desejou ser maior que o destino e foi punido por isso. Se acontece nas melhores tragédias gregas, por que não em épicos modernos?

O filme
A superposição da vida de Franz Biberkopf com a da metrópole que se transforma à custa de miseráveis é o aspecto mais visível da versão para o cinema da narrativa de Döblin. A todo momento Fassbinder usa o cenário não como recurso puramente formal, mas para enfatizar os mecanismos de poder nessa metrópole disputada como centro político de um país à deriva. Assim, às mansões luxuosas, decoradas com móveis bauhausianos, contrapõe-se a miséria das espeluncas habitadas por Biberkopf e os oprimidos da nova (des)ordem moral da República de Weimar, onde almas podem ser compradas a preços irrisórios. Fassbinder percebeu o que talvez nem Döblin tenha notado - e que Benjamin percebeu antes de todos: o destino de Biberkopf é a educação sentimental dos marginais, o que dá à narrativa cinematográfica um aspecto do velho romance de formação burguês. Fassbinder carrega nas tintas do Bildungsroman sem trair a modernidade de Döblin, fazendo com que sua figura se confunda com a da metrópole desde a cena em que o condenado sai da prisão. É essa sequência labiríntica que sintetiza o épico alemão

*imagens inseridas por Geni em texto extraído, sem modificações, do Estado de São Paulo

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