Pessoa chave
O tipo presunçoso que só se considera alguma coisa ao ser confirmado pelo papel que desempenha em coletivos que não o são, e que existem meramente em nome da coletividade; o representante com uma braçadeira; o orador arrebatado, que tempera seu discurso com espirituosidade salutar e antecede sua observação final com um espirituoso “Oxalá assim fosse”; o abutre caridoso e o catedrático que correm de um congresso a outro – todos eles, um dia, provocaram o riso próprio dos ingênuos, dos provincianos e dos pequeno-burgueses. Agora, a semelhança com a sátira oitocentista foi descartada; o princípio difundiu-se, de forma obstinada, das caricaturas para a totalidade da classe burguesa. Não apenas seus membros foram submetidos a um persistente controle social, pela competição e pela cooptação em sua vida profissional, como também sua vida particular foi absorvida pelas formações reificadas em que se cristalizaram as relações interpessoais. As razões, para começar, são cruamente materiais: somente proclamando o consentimento através de serviços louváveis prestados à comunidade como tal, pela aceitação num grupo reconhecido, nem que seja uma simples loja maçônica degenerada em clube de boliche, é que se consegue a confiança, compensada pela conquista de fregueses e clientes e pela concessão de sinecuras. O cidadão substancial não se qualifica meramente pelo crédito bancário, nem tampouco pelos deveres para com suas organizações; ele deve dar seu sangue, e também o tempo livre que lhe sobra da roubalheira, ao posto de presidente ou tesoureiro de comissões para as quais tanto é arrastado quanto sucumbe. Não lhe resta nenhuma esperança, a não ser a homenagem obrigatória na circular do clube quando o ataque cardíaco o alcança. Não ser membro de coisa alguma é despertar suspeitas: quando se pleiteia a naturalização, é-se expressamente solicitado a arrolar os grupos a que se pertence. Isso, porém, racionalizado como sendo a disposição do indivíduo de abandonar seu egoísmo e de se dedicar a um todo – que, a rigor, nada mais é do que a objetivização universal do egoísmo –, reflete-se no comportamento das pessoas. Impotente numa sociedade esmagadora, o indivíduo só vivencia a si mesmo enquanto socialmente mediado. Assim, as instituições criadas pelas pessoas são ainda mais fetichizadas: desde o momento em que os sujeitos passaram a se conhecer somente como intérpretes das instituições, estas adquiriram o aspecto de algo divinamente ordenado. O sujeito sente-se até a medula – certa vez, ouvi um patife usar publicamente essa expressão sem despertar risos – mulher de médico, membro de um corpo docente ou presidente da comissão de especialistas religiosos, do mesmo modo que, em outras épocas, alguém podia sentir-se parte de uma família ou de uma tribo. Ele volta a se tornar, na consciência, aquilo que era em seu ser, de qualquer maneira. Comparada com a ilusão da personalidade autônoma, que teria uma existência independente na sociedade da mercadoria, essa consciência é a verdade. O sujeito realmente não é nada além de mulher de médico, membro do corpo docente ou especialista em religião. Mas a verdade negativa transforma-se numa mentira como positividade. Quanto menos sentido funcional tem a divisão social do trabalho, mais obstinadamente os sujeitos se agarram àquilo que a fatalidade social lhes infligiu. A alienação transforma-se em intimidade, a desumanização, em humanidade, e a extinção do sujeito, em sua confirmação. A socialização dos seres humanos, hoje em dia, perpetua sua associalidade, ao mesmo tempo que não permite ao desajustado social nem sequer orgulhar-se de ser humano.
Theodor W. Adorno - "Mensagens numa garrafa" (Trad. Vera Ribeiro), FSP, 28/05/1996.
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