segunda-feira, 15 de junho de 2009

Entrevista de Beatriz Sarlo

07/06/2009 - 03h04

Leia íntegra da entrevista com a socióloga Beatriz Sarlo

ADRIANA MARCOLINI
Colaboração para a Folha de S.Paulo, em Buenos Aires

O último livro da intelectual argentina Beatriz Sarlo, "La Ciudad Vista" [A Cidada Vista, Siglo Veintiuno Editores, 232 págs., 39 pesos argentinos, R$ 20; sem previsão de lançamento no Brasil], é um ensaio perspicaz sobre as mudanças ocorridas em Buenos Aires nos últimos anos e revela como a cidade foi se transformando com as sucessivas crises que assolaram o país vizinho.

Ao longo de quatro anos, Sarlo se dedicou ao ofício de escritora e jornalista, percorrendo sua cidade natal para a coluna semanal que mantinha no "Clarín".

Carregava consigo apenas uma máquina fotográfica digital e mantinha seu olhar mais do que atento.

uas andanças lhe revelaram uma nova Buenos Aires, uma cidade que mantém seus bairros de classe média arborizados, praças bem conservadas e atrações turísticas, mas onde também existem favelas, se respira pobreza e a negligência com o ambiente salta aos olhos.

As descobertas lhe renderam este livro.

Leia, a seguir, a entrevista que a ex-professora de literatura na Universidade de Buenos Aires e uma das mais prestigiadas estudiosas da obra de Jorge Luis Borges ["Jorge Luis Borges - Um Escritor Na Periferia", ed. Iluminuras, R$ 38] concedeu à Folha, na capital argentina.

Folha - Na introdução de seu livro "A Cidade Vista", a senhora conta que, para escrevê-lo, percorreu Buenos Aires durante quatro anos, tentando ver e escutar, sem usar o gravador. Por que escolheu este método?

Beatriz Sarlo - "A Cidade Vista" surgiu da necessidade de um trabalho jornalístico para a revista "Viva", que sai aos domingos no "Clarín".

Era um trabalho que tinha a ver com os temas que me preocupam, que sempre foram a literatura e a forma como a literatura se misturou com a cultura urbana (a literatura não só a representa, mas também se mesclou a ela), e a cultura urbana, tal como se manifesta no mundo contemporâneo.

Minhas ideias prévias estão muito presentes no livro: a primeira era a de que havia mudado a forma de circulação das mercadorias na cidade de Buenos Aires. Um dos elementos responsáveis foi o shopping center.

Aqui essa mudança começou a partir do início da década de 1990.

Já no Brasil teve início mais cedo, conheci shopping centers em São Paulo anteriores àqueles anos. Os shoppings haviam se tornado uma forma generalizada de circulação das mercadorias, que na outra ponta tinha os vendedores ambulantes.

Uma forma de circulação típica do Terceiro Mundo, que se encontra em toda a América Latina, mas que também existe na África --ou seja, típica das culturas dos pobres.

Essa é uma ideia forte que está desenvolvida no livro.

A segunda era a de que Buenos Aires havia se convertido em uma cidade permeada por uma enorme separação.

Tradicionalmente, sempre fora dividida entre o sul e o norte, em que o norte sempre era mais próspero e o sul, mais pobre --embora sem um abismo entre esses dois pontos cardeais.

Porém o norte se deslocou mais para o norte. Antes, a divisão de Buenos Aires passava quase pelo centro da cidade, que era a rua Rivadavia, que corta a cidade de leste a oeste.

Agora, essa divisão passa pela avenida Santa Fé, deixando dois terços da cidade na zona da pobreza, com exceção dos encraves turísticos, como San Telmo e La Boca.

O que me faltava, então, era ir a campo. Não quis levar o gravador porque em alguns lugares é mais um estorvo que um auxílio à investigação, pois há risco de idolatrar a palavra da pessoa entrevistada.

Os pobres não falam como os intelectuais, sentados diante de um jornalista que faz um artigo para um jornal. Eles falam de um modo diferente, e, portanto, às vezes as descrições etnográficas que citam textualmente os pobres são extremamente repetitivas.

Folha - Mas a máquina fotográfica não intimidava as pessoas?

Sarlo - Com exceção de alguns casos, eu não pedia permissão para fotografar, porque o fazia de muito longe, ou fotografava objetos, ou casas que não podem ser reconhecidas.

Parecia-me que andar pelas ruas que rodeiam as favelas com um caderno de anotações e uma caneta na mão era muito mais exótico do que ter uma câmera digital --só um intelectual carrega consigo um caderno de notas com uma caneta.

A câmera me distanciava menos que um caderno.

Folha - Considerando que ao escrever um livro sobre uma cidade tão grande como Buenos Aires é fácil cair na armadilha da superficialidade, gostaria de saber se a senhora se manteve atenta aos detalhes durante suas observações.

Sarlo - Minha formação original é a de crítica literária --essa é a minha formação acadêmica e continuo fazendo crítica literária. Assim sendo, existe um tipo de olhar com o foco próximo, que nós, críticos literários, aprendemos basicamente com [o semiólogo francês] Roland Barthes e [o teórico alemão] Walter Benjamin.

No meu caso, de maneira muito forte com Barthes, nas "Mitologias". Tenho como "olhar natural", digo entre aspas, e também como um tipo de olhar que busco.

"Olhar natural" porque faz parte de um treinamento, e, em uma mulher de certa idade como eu, esse treinamento já faz parte de seus automatismos, e buscado porque preciso me manter sempre a uma distância muito próxima do objeto, seja ele um texto, ou uma estrutura urbana, ou uma arquitetura.

Não sei se isso evita ou conduz à superficialidade, as outras pessoas é que devem dizê-lo. Não posso julgar meu livro neste ponto.

O que sei é que busquei um olhar extremamente detalhista e por isso também há um uso muito forte da literatura, sobretudo da literatura contemporânea, aquela que também enxerga as configurações urbanas de forma mais próxima, que tem um olhar detalhista.

Folha - De fato, a senhora cita vários trechos de Roberto Arlt e Sergio Chejfec no livro. As crônicas de Arlt sobre Buenos Aires são bastante conhecidas, mas talvez as de Chejfec nem tanto, pelo menos no Brasil. Qual seria a principal diferença entre os dois?

Sarlo - Chejfec é um escritor relativamente jovem, tem por volta de 50 anos; já Arlt, o típico escritor e jornalista, morreu em 1942. Enquanto Arlt era autodidata, Chejfec tem formação universitária, uma característica comum dos escritores argentinos atuais, que têm por volta de 50 anos.

É um autor vanguardista, de grande radicalismo. Acho que não está traduzido no Brasil [de Chejfec foi publicado, no Brasil, o romance "Boca de Lobo", ed. Amauta, R$ 29; de Arlt, foi publicado "Os Sete Loucos e os Lança-Chamas", ed. Iluminuras, R$ 71].

Folha - Ao ler suas descrições sobre as transformações de Buenos Aires, tem-se a impressão de se ler sobre a cidade de São Paulo. A proliferação de shopping centers, a perda dos espaços públicos, a disseminação do medo são um fato tanto aqui como lá. A senhora acredita que essa possa ser uma tendência das metrópoles sul-americanas?

Sarlo - Pode ser, mas, de todo modo, acredito que as duas cidades sejam incomparáveis. Buenos Aires não é uma megalópole, São Paulo sim.

Buenos Aires está circundada por 9 milhões de habitantes, mas a cidade em si tem 3 milhões, e os limites dentro dos quais essa população vive são bastante precisos.

O impacto que produz São Paulo para um portenho é realmente o de uma megalópole do futuro, tanto no seu caráter anômalo como em sua enorme vitalidade, na beleza do moderno e do hipermoderno que tem. Que pode ser um pesadelo no futuro, com uma enorme vitalidade.

Qualquer pessoa de Buenos Aires que vá pela primeira vez a São Paulo tem a sensação de que pulsa o coração de um futuro. Foi isso o que senti quando estive lá pela primeira vez, 20 anos atrás.

Buenos Aires não projeta essa imagem. Nada disso. Ela está rodeada do que, possivelmente, será o futuro de todas as cidades dos países não europeus --cinturões de pobreza, favelas, marcas do desemprego, da podridão, do desastre ecológico.

Mas a cidade em si, que tem limites muito precisos, não tem essas marcas e tampouco essa pulsação do futuro.

São Paulo, sem dúvida, tem problemas infinitamente maiores do que Buenos Aires, começando pela segurança. Há uma exaltação em torno dessa questão aqui, pois no perímetro da capital federal há muita segurança.

Excluindo os bairros do sul, que são aqueles que estudo --Villa Riachuelo, Villa Charruó--, é uma cidade bastante segura para os parâmetros latino-americanos. Já a Grande Buenos Aires pode ser comparada às demais cidades latino-americanas.

Folha - Como a senhora vê Buenos Aires dentro de 30 anos?

Sarlo - Não posso dizer, porque não sei como vejo a Argentina dentro de 30 anos. Se me perguntassem isso com relação ao Brasil, creio que poderia responder de maneira mais fácil.

Folha - E como a senhora vê o Brasil dentro de 30 anos?

Sarlo - Vendo as coisas de fora, a ideia que se tem é a de que o país será uma potência, ao lado de Índia e China. Que catástrofe precisaria acontecer para que o Brasil não seja uma potência? Não vejo catástrofe nenhuma no horizonte brasileiro.

Com relação à Argentina, não sei se continuará a ser um país em decadência ou se conseguirá superá-la e encontrar uma certa estratégia de estabilidade como país pequeno, produzindo alguns bens importantes e dividindo a riqueza produzida.

Folha - O futuro de São Paulo estaria ligado, naturalmente, ao futuro do Brasil, certo?

Sarlo - Sim, do ponto de vista cultural, pois minha perspectiva em relação às cidades é cultural.

Vejo esse caráter pulsante próprio de São Paulo projetando-se no futuro.

Folha - Em seu livro, a senhora também cita as favelas, além das crianças e famílias que vivem nas ruas da cidade. Diz que essa realidade está ligada à pobreza urbana da América Latina, com a qual a capital argentina não se relacionava antes, pois nem a imaginação e nem o senso comum a concebiam como cidade americana. Como os argentinos encaram hoje essa nova realidade?

Sarlo - Primeiro, gostaria de explicar a frase que escrevi.

Digamos que, ao menos até os anos 1960, o emprego, a defesa dos direitos sociais dos trabalhadores e a educação básica eram três questões que a Argentina parecia ter solucionado --com exceção de alguns bolsões de miséria que existiam em algumas Províncias do norte. Isso não acontecia no resto da América Latina e diferenciava o país em relação ao continente.

Acredito que somente nos últimos 20 anos os argentinos começaram a se dar conta de que há pelo menos dois países mais importantes que o nosso no continente: o México e o Brasil.

Quando o ex-presidente José Sarney viajou para a Argentina, em 1985, e assinou os protocolos do Mercosul [Ata de Iguaçu] com o então presidente Raúl Alfonsín, os argentinos ainda pensavam que se estava firmando um pacto entre duas nações equivalentes.

Isso mudou, e mudou muito antes que o notássemos. Ou seja, as mudanças materiais aconteceram em uma temporalidade acelerada. Já a assimilação cultural, a assimilação dessas mudanças no imaginário, a conversão dessas mudanças no senso comum, aconteceram em uma temporalidade mais lenta.

A Argentina precisou passar por várias crises, e creio que na última, de 2001, realmente se deu conta de que não era o país próspero, ou relativamente próspero, que acreditava ser. Foi quando viu, literalmente, exércitos de centenas de pobres nas ruas recolhendo lixo.

Pessoalmente, quero que isso não seja esquecido, que o hábito e o dia a dia não nos apaguem essas centenas ou milhares de pobres que estão hoje nas ruas de Buenos Aires, de Rosario, de Mendoza ou de Córdoba, recolhendo lixo.

Por isso tenho um olhar talvez um pouco obsessivo sobre esses setores. Procuro ver quem está dormindo na rua, onde estão suas roupas, quem está alimentando o filho de um ano de uma moradora de rua, que possivelmente não recebeu nenhuma vacina e não tem assistência médica.

Porque podemos chegar a nos acostumar com isso, sem dúvida, sobretudo quando a classe média já percebeu que não irá cair de patamar.

Houve um momento, em 2001, em que alguns setores da classe média pensaram que iriam decair, e então enxergaram à sua volta, porque pensaram que seu futuro poderia estar na pobreza.

Mas, quando passaram a entender que não cairiam, o olhar se acostumou.

Por outro lado, seja acostumando ou não, essas pessoas estão aí. Esta é a nossa realidade, mesmo em países que podem ser grandes potências, como é o caso de México e Brasil.

Pode haver pobres nas ruas em outros lugares do mundo, mas crianças não --só na África, na América Latina e em algumas regiões da Ásia.

Folha - A frase "Buenos Aires, a Paris da América do Sul" é verdadeira ou foi um lema criado para conferir à cidade uma identidade?

Sarlo - Em princípio, Buenos Aires não se parece com Paris.

É uma mistura de cidades, teve muitos modelos, entre eles Paris, mas também Barcelona e Nova York.

Hoje é globalizada, pode estar olhando para qualquer cidade globalizada, para São Paulo ou para qualquer outra onde estejam sendo construídos os arranha-céus mais altos do mundo.

Buenos Aires sempre foi uma mescla; a avenida de Mayo, por exemplo, é marcada por uma presença arquitetônica eclética. Os portenhos são responsáveis por muitas coisas, mas creio que os latino-americanos também sejam responsáveis pelo lema de "Buenos Aires, a Paris da América do Sul".

É preciso se reportar aos poetas modernistas, a Ruben Darío, aos poetas que vinham da América Central e chegavam a Buenos Aires no final do século 19. Eram de cidades [e países] muito pequenos --Darío era nicaraguense, por exemplo.

Quando queriam fazer uma comparação, o faziam com um nome, não com uma cidade realmente existente --e diziam Paris. Mas não é uma comparação na qual o realmente existente deveria se parecer com o comparado. Simplesmente citavam o nome de uma cidade que, no final do século 19, era a metrópole.

Como se eu, digamos, olhasse para São Paulo e dissesse: isto é uma mescla de arranha-céus que me lembra Nova York, mas não é Nova York, não se parece com Nova York.

Ou seja, coloco um nome, e este nome, no caso de Paris, não o colocaram apenas os portenhos, mas foi algo também criado pelo turismo latino-americano.

No caso do Brasil, o turismo para Buenos Aires era de elite e assíduo. Não havia o turismo de massa de hoje. Então, foi o turismo que foi moldando essa imagem. E, naturalmente, quem conhece Paris, sabe que não se parece com a capital argentina.

Folha - O surgimento das favelas em Buenos Aires era previsível? Seu crescimento pode ser contido?

Sarlo - Assim como os bairros onde os pobres viviam em condições precárias, as favelas começaram a nascer na década de 1940, quando se produziram grandes migrações internas pela necessidade de mão de obra das indústrias que se concentravam nos arredores da cidade.

As favelas cresceram, mas na época eram mais parecidas com um bairro de trabalhadores.

Nos anos 1960, havia muitas favelas dentro e fora da cidade de Buenos Aires; a ditadura as arrancou do perímetro da cidade, mas hoje estão de volta.

Atualmente, há favelas imensas. Antes, as pessoas que viviam nas favelas tinham trabalho. Havia muitos operários da construção civil, imigrantes do Paraguai --em suma, pessoas que tinham um salário.

Podia haver, eventualmente, um ou outro desempregado, mas o problema do desemprego não existia ainda.

Hoje, vivem nas favelas basicamente os desempregados, famílias desestruturadas, com uma forte presença de criminalidade e drogas.

Nos anos 1960, os partidos políticos de esquerda e o peronismo tinham filiais dentro das favelas. Os moradores podiam pelo menos imaginar a ascensão social. Compravam um terreno mais distante na Grande Buenos Aires, sonhavam em construir uma casa por conta própria.

Com relação à contenção do crescimento, se trata de uma resposta política, que não sei responder. Nenhum partido político está tratando seriamente dessa questão, porque os pobres e os desempregados das favelas, pelo menos os que são cidadãos argentinos, são massa de manobra dos partidos políticos --fundamentalmente do Partido Justicialista [partido do atual governo argentino].

Ou seja, esse partido está entre uma ideologia histórica de tirar essas pessoas da favela e, por outro lado, o sentimento de que os favelados são como uma clientela de seus chefes políticos.

Por outro lado, o fenômeno tem crescido tanto que deveria ser considerado um problema nacional.

Se as favelas não forem consideradas um problema federal, não haverá solução. Mas isso tem de ser feito com a anuência das Províncias.

Folha - O governo do Estado do Rio de Janeiro irá construir muros em torno de 13 favelas. A justificativa é a de que irão proteger os habitantes e contribuir para que recebam os serviços públicos, como saneamento e educação, além de impedir o avanço das favelas para dentro da floresta. O que pensa a respeito?

Sarlo - Não posso emitir uma opinião, porque para opinar precisaria conhecer a fundo o que está acontecendo no Rio. Vou dar o exemplo do que houve aqui. Um prefeito de San Isidro, na Grande Buenos Aires, quis construir um muro, de aproximadamente dez quadras, para separar um bairro rico de um pobre, no limite entre San Isidro e San Fernando.

Para poder dar minha opinião sobre o que estava acontecendo, passei 24 horas no local, acompanhada de um fotógrafo de um jornal, para ver de perto e conversar com as pessoas.

Folha - Então gostaria de saber sua opinião sobre o que aconteceu aqui.

Sarlo - Para dizer de uma forma simples, aqui houve uma espécie de ataque de loucura de um prefeito, não pode ser explicado de outra maneira.

Ninguém concordava com esse muro, nem os ricos que estavam de um lado, nem os pobres que estavam de outro. Os ricos, porque esse muro colocava em evidência a discriminação da qual eles se viam beneficiados --e, todavia, vivemos em um país com certo imaginário democrático.

Principalmente quando alguém precisa sair de manhã e atravessar o portão do muro com o carro importado.

Conversei com os ricos, e eles me disseram que tinham o direito de erguer muros de seis metros de altura na própria casa --de fato, elas são cheias de muros e cercas eletrificadas. Mas essas mesmas pessoas também me disseram que isso não podia ser feito no espaço público.

Aí está o imaginário democrático que a Argentina tem. Até os muito ricos não querem ser perseguidos pela culpa, digamos, de que estão se beneficiando de uma espécie de discriminação bestial e patente.

Por outro lado, é lógico que os pobres se sentiam ofendidos, pois o muro nem sequer separava uma favela, mas um bairro pobre.

Um pouco mais adiante desse bairro há várias favelas, e se dizia que os delinquentes podiam vir de lá. Depois de passar muitas horas no local, encontrei apenas uma pessoa favorável à construção do muro.

Folha - Uma boa parte de seu livro é dedicada aos atuais imigrantes em Buenos Aires, aos latino-americanos e aos asiáticos. Qual seria a maior diferença entre as ondas imigratórias de hoje e as do passado?

Sarlo - Em comparação com os fluxos imigratórios do passado, os atuais são muito pequenos. Nas primeiras duas décadas do século 20, em Buenos Aires e em Rosario havia mais estrangeiros que nativos, e, naturalmente, um percentual muito mais elevado de filhos de estrangeiros do que de argentinos.

Eram ondas imigratórias realmente gigantescas, só comparáveis, em toda a América, às dos EUA. Eram gigantescas, porque a Argentina era um país muito despovoado, em que não houve escravidão, como no caso do Brasil. Ou seja, a mão de obra era escassa.

Havia agentes de imigração na Europa que mentiam para os imigrantes em potencial, dizendo-lhes que aqui receberiam terra e máquinas agrícolas, o que não era verdade.

Mas eram salários relativamente altos para a época, e a comida era muito barata. Portanto, não é possível comparar com o que acontece atualmente, embora haja uma corrente imigratória muito forte dos países limítrofes, especialmente da Bolívia e do Paraguai. Já houve também do Uruguai, mas não hoje.

De toda maneira, a marca dessa imigração pobre é forte, e agora se reforçou com a chegada dos peruanos.

Os chineses e coreanos são completamente diferentes, são comunidades muito pequenas --os coreanos não devem ser mais do que 13 mil-- que vêm com pequenos capitais.

Concentram-se em Buenos Aires, em bairros que, eu diria, quase têm o aspecto de gueto, que não se mesclam.

Os coreanos não se misturam mesmo; já os chineses estão mais mesclados e também vêm com pequenos capitais. Em geral seus filhos frequentam bons colégios, pois a educação é muito importante para eles.

Interessou-me muito percorrer o bairro coreano, escutar o idioma e tentar imaginar como deveria ter sido Buenos Aires quando nesta cidade se escutava russo, iídiche, italiano e várias outras línguas, na época em que chegaram meus avós, que eram da Espanha e da Itália.

Queria sentir como deve ter sido esta cidade tão poliglota entre o final do século 19 e o começo do 20.

O bairro coreano me pareceu ser o mais homogêneo do ponto de vista cultural e linguístico. As igrejas têm serviços em coreano, as placas do bairro são apenas neste idioma, os restaurantes só servem comida coreana.

Folha - A senhora conseguiu realmente sentir como era esta cidade poliglota?

Sarlo - A única coisa que eu acreditava que poderia se reproduzir era a sensação de um radical estrangeirismo linguístico. Isto é realmente muito interessante, porque nem sempre se tem essa sensação.

Quando uma pessoa viaja como turista a um país cuja língua desconhece, está na condição de turista, flutuando em um "nowhere".

Pode estar, por exemplo, na praça Vermelha de Moscou [na Rússia], e essa praça acaba sendo um não lugar --melhor dizendo, é como um cenário.

Mas, quando alguém está em sua própria cidade, sentir o estrangeirismo linguístico é muito forte. Por isso, parti de um texto de Roberto Arlt, que teve essa sensação no bairro do Once, habitado por muitos judeus em Buenos Aires.

Fui testar como essa sensação de estrangeirismo poderia se reconstruir --e que os coreanos também devem ter. E me deparei com algo que não sabia que ia encontrar: a separação absoluta entre o bairro coreano e o boliviano. Vivem tão próximos um do outro, mas completamente separados. São como dois países.

Folha - Como a classe média urbana reagiu à chegada desses novos imigrantes? Há discriminação?

Sarlo - Os paraguaios e os bolivianos são discriminados, são todos inseridos em um continente de discriminação latino-americana. São discriminados nas danceterias, ou, se a polícia está à procura de alguém, inicialmente vai atrás de uma pessoa com aspecto de imigrante latino-americano, que também pode ser um argentino do norte. Não é uma discriminação extremamente forte, porque Buenos Aires recebe imigrantes da América Latina e cidadãos do norte do país desde os anos 1940.

Ao mesmo tempo, observo no bairro Charrúa, onde moram os bolivianos e seus descendentes, que eles são uma comunidade fortemente integrada que goza do respeito das demais. É uma zona de cultura boliviana, onde estão presentes as famílias que trabalham juntas. Certamente, também há exploração e há crianças que trabalham desde cedo.

Folha - Por que muitas pessoas na Argentina afirmam que, durante a ditadura (1976-83), tinham menos medo do que hoje?

Sarlo - Porque a ordem do regime militar era a de um regime totalitário. Havia, sem dúvida, dois fatores que se diferenciavam da paisagem social de hoje.

Por um lado, não havia a penetração das drogas e de gangues juvenis drogadas; por outro, não se podia andar pelas ruas tranquilamente à meia-noite.

Naturalmente, os militantes políticos e seus familiares tinham medo, mas depois que os militares e o terrorismo de Estado se ocuparam dos guerrilheiros e de todos os que eram de esquerda, passaram a impor a disciplina para o resto da sociedade.

Não havia toque de recolher, mas não se andava pelas ruas com liberdade, corria-se o risco de ser parado, interrogado, molestado. Naquela época, a polícia tinha direito de pedir documento, hoje não.

A cidade estava sob um regime inicialmente implantado pelo terror e depois pela ordem totalitária.

Folha - A mídia está difundindo o medo da insegurança entre a população argentina?

Sarlo - Sim, a mídia está trabalhando muito mal e está criando ondas de psicose na população. Em princípio, o trabalho da imprensa argentina é ruim, porque não faz o exercício da comparação.

Esse tipo de exercício é feito quando se diz, por exemplo, que nas pesquisas sobre educação, a Finlândia está em primeiro lugar porque as crianças têm o melhor desempenho escolar, e a Argentina ocupa o 140º.

Mas isso não acontece com relação aos dados sobre a segurança, o que contribuiria para esclarecer o problema, inclusive para ter um diagnóstico mais claro.

Ocultar os dados comparativos ou se indignar quando o ministro do Interior Aníbal Fernández afirma que em Buenos Aires acontecem menos assassinatos por ano do que em quatro meses em Caracas [capital da Venezuela] me parece um erro. Fernández é ministro de um governo que absolutamente não tem apoio, mas tem razão.

A imprensa não transmite dados comparativos, principalmente a televisão, que é uma máquina irreflexiva.

E as pessoas não comparam suas experiências com as informações que recebem da imprensa --ou seja, vão passar as férias de verão tranquilas no Rio de Janeiro, apesar de ser uma cidade mais perigosa do que Buenos Aires.

Porque a imprensa tem esta máquina do medo, que tem um poder muito forte de convicção. O medo é uma das zonas obscuras do imaginário coletivo. A imprensa também não separa a ocorrência de delitos por zonas, ajudando as pessoas que vivem nas áreas realmente atingidas a tomarem conhecimento do que ocorre.

E também não compara a violência gerada pelo delito com aquela provocada pelas mortes nas estradas, cujo índice anual é quatro vezes maior.

Por que não se incorporam essas mortes?

Aí começa de novo a discriminação: é porque os moradores das favelas não circulam em carros que vão a 200 km por hora, ou fazem "rachas" em carros possantes. O delito é colocado na zona obscura da sociedade, na zona em que se pode atribuí-lo àquele que é discriminado.

A imprensa também precisaria dar atenção à violência nas estradas. Sem mencionar a doméstica; na Argentina morrem cerca de 200 mulheres por ano vítimas desse tipo de violência, além das que não sobrevivem aos abortos clandestinos.

Por outro lado, em Buenos Aires muitos delinquentes são mortos. Os policiais são assassinados, mas também morrem muitos delinquentes.

Isso também é um tipo de violência provocada por uma força policial que não está bem treinada para reprimir o delito e dar segurança com as garantias constitucionais.

Folha - Como se explica a grande comoção e a mobilização popular que aconteceram com a morte de Raúl Alfonsín [em março]?

Sarlo - Há uma explicação ligada à situação política da Argentina e outra que está relacionada com os passos que Alfonsín deu nos meses anteriores à sua morte.

Uma estratégia política de Alfonsín culminou, ou começou a dar resultado, no momento em que ele estava morrendo. Havia um documento importante que ele estava elaborando, muitas reuniões com políticos da oposição, mas sem fazer dessas reuniões a construção de uma oposição, porque ele estava se despedindo da vida, mas uma tentativa de se chegar a um diálogo político, para que, pela primeira vez em seis anos, houvesse esse diálogo político.

Porque na Argentina dos Kirchner [Néstor e sua mulher Cristina, que é a presidente do país], o governo e a oposição não se sentam para conversar.

É preciso dizer que Alfonsín sempre foi um político adepto do diálogo, inclusive seus grandes erros, como o pacto com [Carlos] Menen, têm a ver com esta vocação.

Creio que, embora as pessoas estejam meio distantes da política, mesmo assim escutaram o chamado de Alfonsín. Esta é a explicação de prazo mais curto.

A outra, mais ampla, é que ele morreu quando já há um cansaço, na classe média, do estilo autoritário dos Kirchner.

E elas [as pessoas] nos recordam que Alfonsín foi um político democrático. O nome dele é uma referência democrática [Alfonsín foi o primeiro presidente eleito após a ditadura vigente na Argentina de 1976 a 1983]. Havia muitos jovens de menos de 20 anos nas fileiras do funeral, eram pessoas que não conheceram sua Presidência [1983-89].

Eu estava lá e perguntei por que estavam ali. Eles respondiam: "Eu o conhecia de nome, me disseram em casa que era um político democrático".

Folha - Quais são as principais diferenças entre Néstor Kirchner e Raúl Alfonsín?

Sarlo - Aí é preciso pensar nas diferenças de estruturas políticas, não de pessoas.

Diria que Alfonsín tinha uma cultura política e um estilo que provinha do Partido Radical, um partido de tradição republicana, forjado na luta pela democratização do voto no início do século 20.

Tinha uma ideologia subjetivamente social-democrata, o que não quer dizer que tenha governado com ela. Alfonsín escalou todos os degraus da hierarquia de seu partido, fez uma carreira.

Nesse sentido, o Partido Radical é bastante fechado, não se pode entrar facilmente pelas bordas.

Kirchner, por outro lado, vem da Província de Santa Cruz [no sul do país], que é muito pequena e tem apenas 200 mil habitantes.

Essa era sua experiência política, foi governador de uma Província com uma renda elevada, em razão da exploração petrolífera. Essas Províncias são governadas com mão de ferro, e se diz que Kirchner nunca dialogou com ninguém em Santa Cruz.

E o partido dele, o Justicialista, é mais um movimento que tem um pouco de tudo, no qual a esquerda e a direita convivem e atravessam de calçada continuamente. Não é nem sequer uma cultura partidária, mas de um movimento. É completamente diferente.

Folha - No Brasil, considera-se o argentino mais politizado que o brasileiro. Apesar disso, as pesquisas apontam que há um desinteresse generalizado em relação às eleições legislativas que ocorrerão aqui no final de junho. Como a sra. explica isso?

Sarlo - O desinteresse pela política é uma marca das sociedades ocidentais hoje em dia.

As pessoas também se desinteressam pela política nos países europeus. Lembremos que quando Jacques Chirac venceu as eleições presidenciais [de 2002] na França, houve uma abstenção no primeiro turno que quase levou [Jean-Marie] Le Pen a ser eleito.

Esse é um problema do Ocidente: há um interesse pelo mais próximo, pelo mais cultural, e a política parece lenta, institucional.

Na Europa, menos de 30% dos eleitores aptos costumam votar nas eleições para o Parlamento europeu.

Portanto, essa não é uma peste só dos latino-americanos. Mas quando e onde não ocorre esse desinteresse? Quando há políticos que unam algo fortemente carismático com programas claros, não simplesmente com slogans.

Em minha opinião, esse foi o caso de Lula e Obama. Quando Obama começou a campanha presidencial, imaginei que queria ficar mais conhecido e se preparar para uma futura candidatura à Presidência.

Porém, efetivamente, ele uniu não apenas ideias --porque é preciso ter ideias--, mas também foi carismático. Sem o carisma não se quebra essa camada de gelo e o desinteresse pela política.

Folha - Para concluir, como pensa que o escritor Jorge Luis Borges reagiria se pudesse voltar a Buenos Aires hoje?

Sarlo - Borges morreu na Suíça [em 1986] e foi enterrado em Genebra por sua própria escolha. Em minha opinião, havia alguma coisa na Argentina da qual ele queria fugir, queria tirar seu corpo, sua morte, de uma espécie de Carnaval nacionalista, em que ele seria uma espécie de fetiche da literatura argentina --inclusive por parte de pessoas que não o leram.

Borges tinha uma percepção do mundo --pode-se dizer-- elitista, mas tinha algo que valorizo muito: era um espírito não nacionalista e liberal.

Escreveu um conto extraordinário, "O Simulacro" [em "O Fazedor", Cia. das Letras], que é imaginário, mas se baseia no que aconteceu no velório de Eva Perón [mulher do presidente argentino Juan Domingo Perón]. Foi um velório de Estado, como se fosse o de um rei, e o país inteiro parou durante 15, 20 dias.

Nesse conto, um homem anda pelas Províncias carregando uma caixa de sapatos com uma boneca loira dentro. Ele a abre nas cidadezinhas e finge uma espécie de velório de Evita, exibindo a boneca em cima de uma mesa.

Aqui Borges põe em evidência o lado sinistro do que acontece com a morte na Argentina, onde parece que vivemos discutindo o destino dos restos mortais de muitas pessoas que foram importantes na história do país.

Pense no que aconteceu com o corpo de Eva Perón [que morreu em 1952], que ficou em exibição na Confederação Geral do Trabalho (CGT) até 1955 e, depois, foi sequestrado e levado para a Europa pela revolução que derrubou Perón.

San Martín [1778-1850], o herói máximo da independência argentina, morreu em uma espécie de exílio na França, e passaram-se décadas até que seus restos mortais fossem trazidos para a Argentina.

Seu traslado foi uma grande operação patriótica.

(Fonte: Folha online, 07/06/2009)



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