quarta-feira, 17 de junho de 2009

A foice e o martelo

Dois excertos de Slavoj Žižek sobre Nazismo e Stalinismo [em tradução livre]:

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John Berger fez recentemente uma observação significativa a propósito de um cartaz publicitário francês de uma companhia de investimentos pela internet chamada Selftrade: sob a imagem de uma foice e um martelo em ouro maciço e cravejados de diamantes, o texto diz: “E se todos lucrassem com o mercado de ações?” A estratégia do cartaz é óbvia: hoje, o mercado de ações atende aos critérios igualitários do Comunismo; todos podem participar dele. Berger se permite um experimento mental simples: “Imagine uma campanha publicitária, hoje, usando a imagem de uma suástica de ouro maciço e cravejada de diamantes! É claro que não daria certo. Por quê? A suástica dirigia-se aos vitoriosos, e não aos derrotados. Ela invocava a dominação e não a justiça.” Em contraste, a foice e o martelo invocavam a esperança de que “a história um dia estaria do lado daqueles que lutam pela justiça fraterna”. A ironia, portanto, é que no momento mesmo em que essa esperança é dada como morta pela ideologia hegemônica do “fim das ideologias”, uma empresa “pós-industrial” paradigmática (existe algo mais “pós-industrial” do que negociar ações na internet?) é obrigada a mobilizar essa esperança dormente para transmitir sua mensagem.
(Slavoj Žižek, "Repeating Lenin")

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Uma notinha – não é matéria para manchetes, obviamente – apareceu nos jornais em 3 de fevereiro [de 2005]. Respondendo a uma proposta de proibir a exibição pública da suástica e outros símbolos nazistas, um grupo de membros conservadores do Parlamento Europeu, na maioria de países ex-comunistas, exigiu que o mesmo se aplicasse aos símbolos comunistas: não só a foice e o martelo, mas até a estrela vermelha. Essa proposta não deve ser apenas desprezada: ela sugere uma mudança profunda na identidade ideológica da Europa.
Até agora, para dizer de maneira direta, o stalinismo não tinha sido rejeitado do mesmo modo que o nazismo. Estamos inteiramente conscientes de seus aspectos monstruosos, mas ainda consideramos a Ostalgie aceitável: pode-se fazer Adeus, Lênin!, mas Adeus, Hitler! é impensável. Por quê? Para tomar outro exemplo: na Alemanha, muitos CDs com antigas canções revolucionárias alemãs-orientais e canções do Partido, de ‘Stalin, Freund, Genosse’ [‘Stalin, amigo, camarada’] a ‘Die Partei hat immer Recht’ [‘O Partido está sempre certo’], são facilmente encontráveis. Mas seria preciso muito mais esforço para encontrar uma coleção de canções nazistas. Mesmo nesse nível anedótico, a diferença entre os universos nazista e stalinista é clara, assim como o é quando lembramos que, nos julgamentos públicos stalinistas, o acusado tinha de confessar publicamente seus crimes e dar um depoimento sobre como veio a cometê-los, enquanto os nazistas nunca exigiram que um judeu confessasse que estava envolvido num plano judeu contra a nação alemã. A razão é clara. O stalinismo concebia-se a si mesmo como parte da tradição do Esclarecimento, segundo a qual, se a verdade é acessível a qualquer homem racional, mesmo que depravado, todos devem ser considerados responsáveis por seus crimes. Mas para os nazistas a culpa dos judeus era um fato de sua constituição biológica: não havia necessidade de provar que eram culpados, pois eles o eram em função de serem judeus.
No imaginário ideológico stalinista, a razão universal é objetivada sob a feição de leis inexoráveis do progresso histórico, e nós somos todos seus servidores, inclusive o líder. Um líder nazista, depois de fazer um discurso, levantava-se e recebia silenciosamente o aplauso, mas, sob o stalinismo, quando o aplauso obrigatório explodia no fim do discurso do líder, ele se levantava e participava dele. Em To Be or Not to Be [Ser ou não ser, 1942], de Ernst Lubitsch, Hitler responde à saudação nazista erguendo o braço e dizendo “Heil eu!” Isso é puro humor porque nunca poderia ter ocorrido na realidade, ao passo que Stalin efetivamente “saudava a si mesmo” quando se juntava aos outros no aplauso. Considere-se o fato de que, no aniversário de Stalin, prisioneiros enviavam-lhe telegramas congratulatórios dos mais escuros gulags: não é possível imaginar um judeu em Auschwitz enviando um telegrama assim para Hitler. É uma distinção de mau gosto, mas sustenta a idéia de que, sob Stalin, a ideologia dominante pressupunha um espaço em que o líder e seus súditos pudessem juntar-se como servidores da Razão Histórica. Sob Stalin, todos eram, teoricamente, iguais.
Não encontramos no nazismo nenhum equivalente dos comunistas dissidentes que arriscaram suas vidas lutando contra o que eles percebiam como a “deformação burocrática” do socialismo na URSS e seu império: não houve ninguém na Alemanha nazista que advogasse um “nazismo com face humana”. Aqui reside a falha (e o preconceito) de todas as tentativas, tais como a do historiador conservador Ernst Nolte, de adotar uma posição neutra – isto é, de perguntar por que não aplicamos aos comunistas os mesmos padrões aplicados aos nazistas. Se Heidegger não pode ser perdoado por seu flerte com o nazismo, por que Lukács e Brecht e outros podem ser perdoados por seu ainda mais longo engajamento com o stalinismo? Essa posição reduz o nazismo a uma reação e a uma repetição de práticas já encontradas no bolshevismo – terror, campos de concentração, a luta de morte contra inimigos políticos – de tal modo que o “pecado original” fica sendo o do comunismo.
No final dos anos 1980, Nolte foi o principal oponente de Habermas no chamado Revisionismusstreit [Controvérsia sobre o revisionismo], argumentando que o nazismo não poderia ser visto como o mal incomparável do século XX. Não só o nazismo, repreensível como foi, apareceu depois do comunismo: ele foi uma reação excessiva à ameaça comunista, e todos os seus horrores foram meramente cópias daqueles perpetrados sob o comunismo soviético. A idéia de Nolte é que comunismo e nazismo partilham da mesma forma totalitária, e a diferença entre eles consiste apenas na diferença entre agentes empíricos que cumprem seus respectivos papéis estruturais (“judeus” em lugar de “inimigo de classe”). A reação liberal mais comum à posição de Nolte é que ele relativiza o nazismo, reduzindo-o a um eco secundário do mal comunista. Contudo, mesmo deixando de lado a comparação infrutífera entre comunismo – uma tentativa distorcida de liberação – e o mal radical do nazismo, deveríamos ainda assim aceitar a idéia central de Nolte. O nazismo foi efetivamente uma reação à ameaça comunista; ele efetivamente substituiu a luta de classes pela luta entre arianos e judeus. Estamos lidando, aqui, com o deslocamento no sentido freudiano do termo (Verschiebung): o nazismo desloca a luta de classes substituindo-a pela luta racial e, ao fazê-lo, obscurece sua verdadeira natureza. O que muda na passagem do comunismo para o nazismo é uma questão de forma, e é nisso que a mistificação ideológica nazista consiste: a luta política é naturalizada como conflito racial, o antagonismo de classes inerente à estrutura social é reduzido à invasão de um corpo estranho (judeu) que perturba a harmonia da comunidade ariana. Não é, como Nolte alega, que haja em ambos os casos a mesma estrutura antagonística, mas que o lugar do inimigo é preenchido por um elemento diferente (classe, raça). O antagonismo de classes, diferentemente do conflito racial, é absolutamente inerente e constitutivo do campo social; o fascismo desloca esse antagonismo essencial.
[...]
É aqui que se deve fazer uma escolha. A atitude liberal “pura” em relação ao “totalitarismo” de esquerda ou de direita – de que ambos são ruins, baseados na intolerância quanto a diferenças políticas e outras, a rejeição dos valores democráticos e humanistas etc. – é a priori falsa. É necessário tomar partido e proclamar que o fascismo é fundamentalmente “pior” que o comunismo. A alternativa, a noção de que é mesmo possível comparar racionalmente os dois totalitarismos, tende a produzir a conclusão – explícita ou implícita – de que o fascismo foi dos males o menor, uma reação compreensível à ameaça comunista. Quando, em setembro de 2003, Silvio Berlusconi provocou protestos violentos com sua observação de que Mussolini, diferentemente de Hitler, Stalin ou Saddam Hussein, nunca matou ninguém, o verdadeiro escândalo foi que, longe de ser uma expressão da idiossincrasia de Berlusconi, sua declaração era parte de um projeto em andamento de mudar os termos de uma identidade da Europa do pós-guerra, baseada na unidade anti-fascista. Esse é o contexto apropriado dentro do qual se pode entender a proposta dos conservadores europeus de proibir os símbolos comunistas.
(Slavoj Žižek, "The Two Totalitarianisms")

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