segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Um documento histórico

Carta aberta de Hans Magnus Enzensberger, recunciando ao emprego em uma universidade americana, publicada em The New York Review of Books, em 29 de fevereiro de 1968. O texto original em inglês encontra-se aqui.
A experiência cubana em que Enzensberger se lançaria depois desta carta resultou no magnífico poema O Naufrágio do Titanic (1978).

Sr. Edwin D. Etherington,
Presidente,
Universidade de Wesleyan,
Middletown, Conn.

Caro Sr. Presidente,
Venho pedir-lhe que aceite meu afastamento do cargo de Fellow do Centro de Estudos Avançados da Universidade de Wesleyan. Ao mesmo tempo, desejo agradecer, da melhor maneira possível, pela hospitalidade que demonstrou durante minha estadia aqui. O mínimo que devo ao senhor, à faculdade e aos alunos é uma exposição das razões por que estou deixando Wesleyan.
Deixe-me começar com algumas considerações elementares. Acredito que a classe que governa os Estados Unidos da América, e o governo que implementa sua política, é o mais perigoso grupo de homens da Terra. De um modo ou de outro, e num nível diferente, essa classe é uma ameaça para qualquer um que não seja parte dela. Ela está se empenhando numa guerra não-declarada contra mais de um bilhão de pessoas; suas armas vão do bombardeamento saturado até as mais delicadas técnicas de persuasão; seu alvo é estabelecer o seu próprio predomínio político, econômico e militar sobre qualquer outro poder no mundo. Seu inimigo mortal é a mudança revolucionária.
Muitos americanos estão profundamente preocupados com o estado de sua nação. Rejeitam a guerra que se empreende em seu nome contra o povo do Vietnam. Procuram maneiras e meios de acabar com a guerra civil latente nos guetos das cidades americanas. Mas a maioria deles ainda se agarra à idéia de que essas crises são acidentes desafortunados, decorrentes da administração deficiente e da falta de entendimento: erros trágicos da parte de um poder mundial que de outro modo seria pacífico, são e bem-intencionado.
Não posso concordar com tal interpretação. A guerra do Vietnam não é um fenômeno isolado. É o resultado mais visível e, ao mesmo tempo, o mais sangrento teste de uma política internacional coerente que é aplicada aos cinco continentes. A classe dominante dos EEUU tomou posição nas lutas armadas da Guatemala e da Indonésia, do Laos e da Bolívia, da Coréia e da Colômbia, das Filipinas e da Venezuela, do Congo e da República Dominicana. Essa não é uma lista exaustiva. Muitos outros países são governados, com apoio americano, por meio da opressão, da corrupção e da fome. Ninguém pode mais sentir-se seguro, nem na Europa, nem mesmo nos próprios EEUU.
Não há nada de surpreendente ou original na simples verdade que estou afirmando aqui. Não tenho espaço para qualificá-la e diferenciá-la de maneira científica. Outros, muitos deles scholars americanos como Baran e Horowitz, Huberman e Sweezy, Zinn e Chomsky, o fizeram detalhadamente. Essa verdade foi chamada de antiquada, entediante e retórica; conseqüência de uma imaginação paranóica ou simples propaganda comunista. Tais mecanismos de defesa são parte do equipamento padrão do intelectual ocidental. Como os encontrei com freqüência por aqui, tomo a liberdade de examiná-los mais de perto.
O primeiro argumento é realmente uma questão de semântica. Nossa sociedade parecia propensa a ser permissiva a respeito de antigos tabus de linguagem. Ninguém mais fica chocado com os antiqüíssimos e indispensáveis palavrões. Ao mesmo tempo, uma nova safra de palavras foi banida, por comum consentimento, da sociedade educada: palavras como exploração e imperialismo. Elas adquiriram algo de obsceno. Cientistas políticos passaram a usar paráfrases e circunlóquios que soam como os eufemismos neuróticos dos vitorianos. Obviamente, é mais fácil abolir a palavra exploração do que aquilo que ela designa; mas livrar-se da palavra não é livrar-se do problema.
Um segundo mecanismo de defesa é usar a psicologia como escudo. Disseram-me que é doentio e paranóico conceber um poderoso grupo de pessoas que são um perigo para o resto do mundo. Isso equivale a dizer que em lugar de ouvir seus argumentos é melhor observar o paciente. Mas não é fácil defender-se contra psiquiatras amadores. Devo limitar-me a alguns pontos essenciais. Não imagino uma conspiração, já que não há necessidade de tal coisa. Uma classe social e, especialmente, uma classe dominante, não se mantém unida por laços secretos, mas por interesses comuns e muito evidentes. Não fabrico monstros. Todos sabem que presidentes de bancos, generais e industriais militares não se parecem com demônios de revista em quadrinhos. Eles são cavalheiros gentis, de boas maneiras, possivelmente amantes de música de câmara, com um pendor filantrópico na cabeça. Não faltava gente assim nem na Alemanha dos anos 30. Sua insanidade moral não decorre do caráter individual, mas de sua função social.
Finalmente, há um mecanismo de defesa político operando na afirmação de que tudo o que escrevo aqui é só propaganda comunista. Não tenho por que temer essa honrosa acusação. Ela é imprecisa, vaga e irracional. Em primeiro lugar, a palavra comunismo, usada no singular, tornou-se um tanto sem sentido. Cobre uma ampla variedade de idéias conflitantes; algumas delas até se excluem mutuamente. Além disso, minha opinião a respeito da política externa americana é compartilhada por liberais gregos e arcebispos latino-americanos, camponeses noruegueses e industriais franceses: pessoas que geralmente não são consideradas como parte da vanguarda do “Comunismo”.
O fato é que a maioria dos americanos não tem idéia de como o seu país é visto pelo mundo externo. Eu vi o olhar que os segue: turistas nas ruas do México, soldados de partida em cidades do Extremo Oriente, homens de negócios na Itália ou Suécia. O mesmo olhar é lançado para suas embaixadas, seus destróiers, seus cartazes ao redor do mundo todo. É um olhar terrível, porque não faz distinções nem compensações. Direi por que reconheço esse olhar. É porque sou alemão. É porque o senti em mim mesmo.
Se você tenta analisá-lo, encontra uma mistura de desconfiança e ressentimento, temor e inveja, desprezo e ódio aberto. Esse olhar se dirige a seu Presidente, para quem dificilmente há capital no mundo onde ele possa mostrar sua face em público; mas dirige-se também para a gentil velhinha atravessando a ilha no vôo de Delhi a Benares. É um olhar indiscriminado, maniqueísta. Não gosto dele. Não compartilho da crença de seu Presidente na corrupção coletiva e na culpa coletiva. “Não esqueçam”, disse ele a seus soldados na Coréia, “há somente 200 milhões de nós num mundo de 3 bilhões. Eles querem o que nós temos, e nós não vamos dar a eles.” É perfeitamente verdadeiro que todos nós tomamos uma parte na pilhagem do Terceiro Mundo. Economistas como Dobb e Bettelheim, Jalée e Robinson apresentaram amplas evidências para a alegação de que os países pobres, que estamos subdesenvolvendo, subsidiam nossas economias. Mas certamente o Sr. Johnson está exagerando a questão quando sugere que o povo americano é uma corporação gigante, una e sólida, lutando pelos despojos. Há mais para admirar nos EEUU do que os olhos do Sr. Johnson. Encontro pouca coisa na Europa que pudesse comparar com a luta travada pelas pessoas do SNCC, do SDS e do Resist. E posso acrescentar que lamento o ar de superioridade moral que muitos europeus hoje em dia afetam com respeito aos EEUU. Parecem considerar um mérito pessoal que seus próprios impérios tenham sido esmagados. Isso, claro, é nonsense hipócrita.
Contudo, existe algo como responsabilidade política por aquilo que seu próprio país está fazendo com o resto do mundo, como os alemães descobriram à sua própria custa depois das duas Guerras Mundiais. Em mais de uma maneira, o estado de sua União me lembra o estado de meu próprio país na metade dos anos 30. Antes que você rejeite essa comparação, peço que reflita que ninguém ouviu ou pensou em câmaras de gás naquela época; que os respeitáveis homens de Estado recusaram crer que a Alemanha tinha pretendido dominar o mundo. É claro, todos puderam ver que havia muita discriminação racial e perseguição acontecendo; o orçamento dos armamentos cresceu a uma taxa alarmante; e havia crescente envolvimento na guerra contra a revolução espanhola.
Mas aqui minha analogia se desfaz. Pois não só nossos senhores atuais possuem um poder destrutivo com que os nazistas nunca poderiam sonhar; eles também alcançaram um grau de sutileza e sofisticação desconhecido nos velhos tempos crus. Hoje, a oposição verbal corre o risco de tornar-se um esporte inofensivo, autorizado, bem-regulamentado e, até certo ponto, até encorajado pelos poderosos. As universidades se tornaram um campo favorito para esse jogo ambíguo. É claro, somente um dogmático do tipo mais abominável poderia argumentar que a censura e a repressão aberta seriam preferíveis à liberdade precária e enganadora que estamos gozando agora. Mas, por outro lado, somente um tolo poderia ignorar que essa mesma liberdade criou novos álibis, armadilhas e dilemas para aqueles que se opõem ao sistema. Levei três meses para perceber que as vantagens que vocês me dão terminariam por desarmar-me; que, ao aceitar seu convite e sua gratificação, perdi credibilidade; e que o mero fato de estar aqui nesses termos iria desvalorizar o que quer que eu tivesse a dizer. “Ao julgar um intelectual, não basta examinar suas idéias: é a relação entre suas idéias e seus atos que conta.” Esse conselho, dado por Régis Debray, tem certa relação com minha situação atual. Para ficar claro que realmente acredito no que digo, tenho que dar um basta nisso.
É algo necessário, mas dificilmente suficiente. Pois uma coisa é estudar o imperialismo no conforto, e outra bem diferente enfrentá-lo onde ele mostra sua face menos benevolente. Acabei de voltar de uma viagem a Cuba. Vi os agentes da CIA no aeroporto da cidade do México tirando fotos de cada passageiro que partia para Havana; vi os contornos dos navios de guerra americanos na costa cubana; vi os vestígios da invasão americana na Baía dos Porcos; vi a herança de uma economia imperialista e as cicatrizes que deixou no corpo e na mente de um pequeno país; vi o cerco diário que força os cubanos a importar cada colher que usam da Tchecoslováquia e cada galão de gasolina da União Soviética, porque os EEUU têm tentado por sete anos fazê-los passar fome até se renderem.
Decidi ir a Cuba para trabalhar lá por um período de tempo substancial. Isso não é um sacrifício de minha parte; apenas sinto que posso aprender mais com o povo cubano e ser de maior utilidade para eles do que poderia ser para os alunos da Universidade de Wesleyan.
Esta carta é uma maneira pobre de agradecer por sua hospitalidade, e lamento muito que seja tudo que eu tenha a oferecer após três meses pacíficos. Percebo, é claro, que meu caso, em si mesmo, não tem importância ou interesse para o mundo externo. Contudo, as questões que levanta não dizem respeito a mim apenas. Por isso, quero respondê-las, da melhor maneira possível, em público.
Cordialmente,
Hans Magnus Enzensberger
31 de janeiro de 1968

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