domingo, 27 de setembro de 2009

Entrevista de Franco Moretti

Aventuras modernas

Coletânea de ensaios sobre o romance, organizada por Franco Moretti, é lançada no Brasil

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

A obra de maior ambição do italiano Franco Moretti, professor de literatura na Universidade Stanford, nos EUA, ele próprio um dos mais ambiciosos e ousados críticos literários em atividade, começa a ser editada no Brasil.
O primeiro dos cinco volumes de "O Romance" ("A Cultura do Romance", ed. Cosac Naify, trad. Denise Bottmann, 1.120 páginas, R$ 130) chega às livrarias. Moretti é o organizador dessa coletânea de ensaios de especialistas de vários países -nomes como Fredric Jameson, Umberto Eco, Mario Vargas Llosa, Beatriz Sarlo e Roberto Schwarz, entre outros- que se debruçam sobre a história, em todas as partes do globo, do gênero literário que dá nome à empreitada.
Na entrevista a seguir, ele fala sobre a versão ocidental do romance, seu momento de ascensão e definição formal no século 18 e a tarefa do gênero de apresentar "soluções imaginárias para as contradições reais" e irreconciliáveis da modernidade.

FOLHA - Em um artigo recente, o sr. diz que algumas características do gênero romance, no Ocidente, têm a ver com o padrão de consumo específico que passou a marcar essas sociedades a partir do século 18. Poderia explicar?
FRANCO MORETTI -
No século 18 houve certamente um aumento significativo do consumo de "luxos cotidianos", como tecidos, relógios, móveis, café etc. Também houve um aumento no consumo de livros, e de romances. Geralmente os historiadores literários buscam uma explicação para esse aumento de vendas de livros na própria estrutura dos romances -que seriam mais bem escritos, mais realistas, mais interessantes para os leitores, e por aí vai.
Procurei uma explicação alternativa para o fato de, de repente, os romances venderem mais. Defendi que a razão deve ser semelhante àquela que levou, no mesmo período, a uma produção e a um consumo maior de relógios, por exemplo.
Um desenvolvimento geral de bem-estar material e de riqueza, provocando um modo diferente de se relacionar com os romances, que passam a ser objeto de um tipo de leitura mais distraída.

FOLHA - O sr. compara o crescimento no número de pessoas capazes de ler, que teria dobrado, e o crescimento na venda ou no aluguel de romances, que teria aumentado de forma muito maior...
MORETTI -
Sim, isso indica que as pessoas estavam lendo um número maior de obras, e que essa leitura era feita de uma outra maneira; elas as liam de forma mais desatenta.

FOLHA - E isso implica uma nova forma estética para o romance?
MORETTI -
Sim. Que relação exata há entre uma coisa e outra, tenho dúvidas se saberia dizer. De todo modo, os romances passaram a ter que ser escritos de forma a capturar esse novo tipo de atenção. Por outro lado, isso não determina um tipo específico de estilo ou de trama. O que se percebe é que os romances não são tomados como uma arte séria, como passaram a ser bem mais tarde, já no século 20.

FOLHA - O sr. faz um contraste com a China na mesma época.
MORETTI -
Sim, na China os romances tinham uma estrutura narrativa e estética muito mais complexa, e isso impossibilitava o tipo de leitura "desatenta" que se tornou tão importante no Ocidente.

FOLHA - O sr. chama a atenção para o fato de muitos romances serem, no fundo, uma história de aventura. Alguém vai para algum lugar novo, inexplorado, tentar algo que não havia sido feito antes etc. E diz que isso termina sendo, de certa forma, uma característica "arcaica" do romance, já que o protótipo dessas aventuras seria o cavaleiro medieval. Qual é a razão, a seu ver, da força desse arcaísmo?
MORETTI -
A maioria dos gêneros mais populares dos últimos 200 anos é uma variação da história de aventura. Isso vale para a ficção científica, para as histórias de detetive etc. Isso parece ser um fato. Mas como se deu isso? Havia, primeiro, um enorme reservatório de histórias desse tipo, que foram escritas ao longo de séculos e reutilizadas nos romances.
Mas a verdadeira questão é: por que essas antigas histórias permaneceram tão vivas, tão importantes na modernidade? Provavelmente a resposta é parecida com aquela que podemos dar a outras questões próprias à modernidade, como, por exemplo: por que o poder patriarcal se manteve tão forte sob o capitalismo, na sociedade burguesa?
O capitalismo -e a modernidade- sempre fez uso, adaptou ou cooptou formas preexistentes de poder simbólico ou real. Isso vale com a monarquia, com o patriarcalismo, com a escravidão. Penso que algo semelhante ocorreu no imaginário ocidental com as histórias de aventura e o romance. Antigas alianças desaparecem muito lentamente, se de fato chegam a desaparecer.

FOLHA - O sr. diz que o próprio fato de a trama aventuresca ser arcaica serve a um propósito...
MORETTI -
Ela recebe uma função a cumprir. Especialmente na representação da guerra, creio, que é um aspecto fundamental do imaginário de aventura e do capitalismo. O que acontece quando a sociedade capitalista moderna tem que ir à guerra? Ela tem que ter uma cultura da guerra, e o capitalismo moderno, enquanto tal, não dispõe dessa cultura específica. Ele a herdou de outras formações sociais. A aventura é uma realização simbólica, idealizada da guerra.
Então, a razão pela qual temos aventura no romance moderno é a mesma por que temos guerras no capitalismo. Sempre se disse que o comércio substituiria a guerra, e que, em vez de nos matarmos uns aos outros, trocaríamos produtos. Isso, claro, nunca aconteceu.

FOLHA - Por falar em guerra, em um outro livro, o sr. diz que o romance cumpre a função de nos consolar com compromissos, ajustes possíveis, em meio a uma época de conflitos incessantes e inevitáveis. Como a ideia de aventura se reconcilia com essa, de "consolo"?
MORETTI -
Ainda penso na literatura como uma forma de "compromisso", de ajuste simbólico possível, de "solução" para os conflitos de uma época. Creio que, de fato, os romances permitem às pessoas se sentirem menos desconfortáveis em meio a esses seus conflitos.
Há esta fórmula de Lévi-Strauss para os mitos: soluções imaginárias para contradições reais. Creio que isso explica o que acontece com os romances e o modo como, ao longo do tempo, algumas obras são selecionadas pelos leitores em detrimento de outras. Há contradições (sociais, econômicas) que são mais importantes e soluções (nas obras) que parecem mais plausíveis.
O romance policial, por exemplo, tem muito a ver com o antigo mundo de aventura -há o desconhecido, há ganância, mistérios-, mas a estrutura é reapresentada de forma completamente racionalizada. É um gênero de um mundo de físicos, químicos, advogados, do século 19, da época vitoriana. É claramente um compromisso, um ajuste entre a antiga lógica das histórias de aventura e a nova lógica de um mundo racional e cientificista.

***
Moretti busca fazer história mundial da literatura

Utilizando trabalhos como o de Roberto Schwarz, autor alia estilo, humor e análise rigorosa

LUÍS AUGUSTO FISCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não faz muito que o nome de Franco Moretti passou a ocupar algum espaço no debate literário no Brasil -o artigo que primeiro o colocou em evidência entre nós saiu em 2001, sob o título vasto e vago de "Conjecturas Sobre a Literatura Mundial" (em "Contracorrente", organizado por Emir Sader, editora Record).
Mas o texto revelou logo o tamanho da briga que este italiano, especialista em romance inglês, comprava: nem mais, nem menos, estava repassando criticamente as principais alternativas concebidas até hoje na direção de uma história mundial da literatura. Nada óbvio, nada fácil.
Ele se sai otimamente bem da empreitada. Não porque tenha qualquer ilusão de esgotar o assunto nos termos acadêmicos em que ele se apresenta -seja na forma das já velhas histórias nacionais (tantas vezes nacionalistas) de literatura, seja na moda da literatura comparada (tantas vezes um simples rebaixamento do problema)-, justo pelo contrário.
Arguindo a noção de que estudar literatura implica mergulhar profundamente em muito poucos livros, os canônicos, Moretti propõe uma perspectiva darwinista, isto é, materialista e empirista, animada pela tradição marxista, mas longe da variante adorniana.

Caso raro
Em sua mão, o que vai falar é um objeto muito mais vasto, que se compõe virtualmente da totalidade dos livros escritos, em qualquer parte. Vale conferir o quanto isso rende em seu primeiro livro traduzido aqui, o "Atlas do Romance Europeu" (Boitempo).
O que torna sua análise possível são duas restrições. Primeira: ele se ocupa do romance, e não de toda a literatura. Como se sabe, o romance é uma forma relativamente fácil de discernir em qualquer paisagem, em qualquer idioma, por variadas que sejam suas encarnações concretas.
Segunda: sem ilusões de poder ler todos os romances do mundo, nem mesmo os de um só país de cultura letrada sólida, ele se serve de leituras já feitas, de estudos que tenham já detectado modos particulares de ser do romance naquele contexto -daí, por exemplo, a centralidade que em sua teoria ocupa a figura de Roberto Schwarz, que estudou minuciosa e proficientemente a forma do romance brasileiro do século 19, entre [José de] Alencar e Machado de Assis.
Daqui se segue que o âmbito de trabalho morettiano é um caso raro na área, porque permite compartilhamento de tarefas e cumulatividade de trabalhos, como se fossem os estudos literários um ramo de ciência da natureza.
"A Literatura Vista de Longe": esse é o nome de um de seus grandes livros (edição brasileira: Arquipélago) e uma designação abreviada de seu método. Trata-se de olhar em perspectiva, a ponto de poder discernir os grandes veios, as tendências, os caminhos que o romance tomou.
Não quer estudar estrutura narrativa em abstrato; sua batalha é com a empiria que estrutura os romances. Cidade, campo, a rua, a divisão das classes pelo espaço, proximidade ou distância, essas variáveis geográficas são convocadas em paralelo com o desenho dos enredos, com o perfil das personagens, com o destino dos heróis.
Tudo isso vem com um acréscimo nada desprezível: Moretti escreve com um estilo marcante e eficaz, composto de muitos dados, confissões do pesquisador e um bom humor desconcertante, mas sempre orientado pela eficácia argumentativa. E nada disso impede que levante voos interpretativos, em que formula hipóteses de imenso valor analítico, em contraste com a relativa frivolidade da área, como se lê em "Signos e Estilos da Modernidade" (Civilização Brasileira).


LUÍS AUGUSTO FISCHER é crítico literário, professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de "Machado e Borges" (ed. Arquipélago), entre outros livros.

Fonte: FSP, 27/09/09.

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