sexta-feira, 21 de maio de 2010

Rimbaud - Une saison en enfer

Sangue ruim


Tenho de meus ancestrais gauleses o olho azul claro, a cabeça dura e a pouca inclinação para a luta. Meus trajes me parecem tão bárbaros quanto os deles, mas eu não besunto de banha minha cabeleira.

Os gauleses eram os mais inaptos despeladores de animais, os mais ridículos queimadores de grama de sua época.

Deles eu herdei a idolatria e o amor ao sacrilégio; - oh! todos os vícios, ira e luxúria - magnífica, a luxúria; - mais que tudo, o perjúrio e a preguiça.

Tenho horror aos ofícios. Mestres, trabalhadores e camponeses, todos uns ignóbeis! A mão na pena bem vale a mão na carroça - Que século pródigo de mãos! - Eu jamais estenderia a minha mão. Afinal, a domesticidade leva longe demais. A honestidade da mendicância me embaraça. Os criminosos são de revirar o estômago tanto quanto os castrados (eu, de minha parte, estou intacto, o que para mim tanto faz).

E no entanto! quem terá feito de minha língua algo tão pérfido a ponto de resguardar e conduzir até aqui esta minha preguiça? Sem ao menos me permitir que eu viva de meu corpo e mais inativo que um sapo, eu vivo por aí. Não há nenhuma família na Europa que eu não conheça. - famílias como a minha, que modelam-se segundo a Declaração dos Direitos do Homem. Eu conheci cada filho de família!


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Ah, se eu tivesse antecedentes em um ponto qualquer da história da França!

Mas não, nada disso.

Cá com meus botões, é bem óbvio que eu sempre fui raça inferior. Eu não pude compreender a revolta. Jamais minha raça se lançou à pilhagem - como os lobos à presa que eles pouparam.

Repasso em lembrança a história da França, primogênita da Igreja. Vilão, eu teria partido à terra santa; trago na cabeça as rotas das planícies suábias, vistas de Bizâncio, as muralhas dos Sólimos; o culto de Maria, - em mim o compadecimento pelo crucificado desperta por entre enlevos profanos - estou sentado sobre urtigas e cacos de jarros espatifados, um leproso ao pé do muro roído pelo Sol. - Mais tarde, cavaleiro teutônico, eu bivacaria sob as noites d'Alemanha.

Ah!, eu danso o sabá numa clareira rubra com velhas e crianças.

Minha memória não me leva muito além desta terra e do cristianismo. Eu me observaria a não mais poder no passado. Mas sempre só; sem família; falando às pedras em todas as línguas. Jamais me vejo nos conselhos de Cristo; nem nos conselhos dos Senhores - os representantes do Cristo.

Que era eu no último século?: não me encontro em outro tempo que não este aqui. Vagabundos demais, guerras vagas demais. A raça inferior tudo recobriu - o povo, como se costuma dizer, a razão; a nação e a ciência.

Oh!, a ciência! Tudo já retomamos. Para o corpo e para a alma, - o viático, - temos a medicina e a filosofia, - os remédios das senhoras caridosas e as canções populares bem marteladas. Os folguedos dos príncipes e os brinquedos que eles proibiam! Geografia, cosmografia, mecânica, química!...

A ciência, a nova nobreza! O progresso. Assim caminha a humanidade! Afinal, por qual bom motivo o mundo deixaria de rodar?

É a sublime visão dos números. Vamos, sigamos em marcha rumo ao Espírito! É muito provavelmente certo, é oracular o que eu digo. Compreendo tudo e, em não poder me explicar com palavras pagãs, eu preferiria me calar.


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O sangue pagão ressuma! O Espírito está próximo. Por que o Cristo não acorre, não estende a mão à minha alma, nobreza e liberdade? Ai de mim! O Evangelho se foi! O Evangelho! O Evangelho.

Em Ti espero com glutonia! Sou raça inferior para toda a eternidade.

Eis-me aqui nas praias armoricanas. Que as cidades se iluminem ao cair da tarde. Minha jornada está cumprida; eu deixo a Europa. A maresia queimará meus pulmões; as paragens mais recônditas me bronzearão. Nadar, pisar a relva, caçar, sobretudo fumar; beber licores fortes como o metal liquefeito, borbulhante - tal qual faziam meus queridos ancestrais ao redor das fogueiras.

Quando eu voltar, terei membros de ferro, a pele escura, os olhos em fúria: sob minha máscara, hão de me considerar raça forte. Nadarei em ouro: serei ócio e brutalidade. As mulheres pajeiam esses ferozes enfermos egressos de países quentes. Me embrenharei na política, estarei salvo.

Agora sou maldito, tenho horror à patria. O melhor é mesmo um sol ébrio queimando as ervas daninhas sous le pavé.


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Não partimos - Retomemos nossos caminhos daqui, munidos de meu vício, o vício que fez abrir em flor essas raízes de sofrimento, desde a idade da razão - que sobe aos céus, me arrebenta, me derruba, me arrasta.

A última inocência e a última timidez. Está dito. Não atribuir ao mundo meus desgostos, minhas traições.

Vamos! A marcha, o fardo, o deserto, o tédio e a cólera.

A quem hei de louvar? A qual besta devo adorar? Qual santa imagem é preciso atacar? Quais corações arrebentar? Qual mentira devo perseguir? - Passar imperturbável... sobre qual sangue?

Acima de tudo reguardar-se da justiça - a vida dura, o embrutecimento puro e simples - erguer, o punho exangue, o tampo do caixão; acomodar-se, sufocar-se. Assim, sem um pingo de velhice ou de perigo: o pavor não é lá muito francês.

Ah! Estou a tal ponto desenganado que ofereço arroubos de perfeição a imagens divinas quaisquer.

Oh, minha abnegação; oh, minha maravilhosa caridade! ao rés do chão, no entanto!
De profundis Domine, como sou besta!



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Pequeno de tudo, eu já admirava o forçado intratável trancafiado sempre nas galeras; eu visitava os armazéns e as guarnições que ele sagrava em sua estadia; eu o via em ideia destacando-se do céu azul e do trabalho florescente nos campos; eu farejava os rastros de sua fatalidade cidade adentro. Mais forte que um santo, mais sensato que o mais experiente dos viajantes - ele, ele apenas! como testemunha de sua própria glória e razão.

Nas estradas, sob as noites de inverno, aos farrapos, sem mansarda, sem pão, uma voz estreitando meu coração enregelado: "Força ou debilidade: eis tu, isto é força! Não sabes para onde vais nem por quê, penetras todos os lugares, respondes a tudo. E não estarias mais assassinado se fosses cadáver". Na manha seguinte, estavam meus olhos tão perdidos e meus contornos tão apagados, que os que passaram por mim talvez não me tenham visto.

Nas cidades a lama me parecia de repente vermelha e negra, como a vidraça que a luz da lamparina em movimento acende e apaga, como um tesouro no bosque! Boa sorte, eu gritava, e via um mar de chamas e de fumaça nos céus; e à esquerda, e à direita, todas as riquezas crepitando como um milhão de raios.

Mas a orgia e a companhia das mulheres me haviam proibido. Sequer um companheiro. Eu me via diante de uma multidão exasperada, diante do pelotão de execução, chorando e perdoando uma desdita que eles jamais poderiam compreender! - Como Joana D'Arc! -"Padres, professores, mestres, enganai-vos em submeter-me à justiça. Jamais pertenci a esta gente; jamais fui cristão; sou da raça dos que cantavam durante o suplício; eu não compreendo as leis; falta-me um pingo que seja de senso moral; sou um bruto: enganai-vos". Sim, eu tenho olhos fechados à vossa luz. Eu sou uma besta, um negro. Mas posso ser salvo; enquanto vós, vós sois falsos negros - vós maníacos, vós ferozes, vós avaros. Mercador, és negro; magistrado, és negro; general, és negro; imperador, velha degustação, és negro: tu bebeste de um licor não taxado da bodega do diabo - Este povo é inspirado pela febre e pelo câncer. Enfermos e velhos caquéticos são tão respeitaveis que é como se pedissem para serem desmanchados em água fervente - Astúcia seria deixar para trás este continente, onde a loucura vai à luta para prover de reféns esses miseráveis. Eu adentro o verdadeiro reino dos filhos de Cham...

Conhecerei eu ainda a natureza? Conhecerei a mim mesmo? - Palavras demais. Eu enterrei os mortos no meu ventre. Gritos, tambores, dança, dança, dança, dança! Mal posso esperar a hora em que, os brancos desembarcados, eu cairei no nada.

Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança!


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Os brancos desembarcam. O canhão! Mister submeter-se ao batismo, vestir-se, trabalhar.

A graça me trespassa o coração. Ah!, eu não previa.

Nada fiz de mal a ninguém. Os dias me serão leves, serei poupado da expiação. Eu não haveria de sofrer as tormentas do bem sobre a alma moribunda, de onde emana a luz severa das velas funerárias. A sorte dos filhos de família, caixão prematuro recoberto de límpidas lágrimas. Sem dúvida a libertinagem é bestial, o vício é bestial; deve-se descartar toda podridão. Mas jamais o relógio ressoará nada além da hora da mais pura dor! Sofrerei a ascese das crianças, para folgar no paraíso ao abrigo de toda míséria!

Rápido! Haverá outras saídas? - O sono conciliado na riqueza é impossível. A riqueza sempre foi bem público. Só o amor divino outorga as chaves da ciência. Vejo que a natureza é mesmo um espetáculo de bondade. Adeus quimeras, erros, ideais.

O canto razoável dos anjos se eleva do navio salvador: é o amor divino - Dois amores! Eu pude morrer de amor terrestre, morrer de devoção. Deixei para trás almas cuja pena aumentará com minha partida! Vós me escolhestes dentre os náufragos. Os que ficam não são meus pares?

Salvai-os!

A razão nasceu em mim. O mundo é justo. Eu abençoarei a vida. Eu amarei meus semelhantes. Ei-los, meus votos. Não são promessas de criança. Nem esperanças de furtar-me à velhice e à morte. Em Deus está minha força e eu louvo a Deus.


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O tédio não é mais meu bem amado. As iras, as libertinagens, a loucura cujos elãs e desastres conheço - todo o meu fardo cai por terra. Apreciemos sem vertigem a amplidão de minha inocência.

Já não seria mais capaz de clamar pelo refrigério de uma paulada. Não acredito que embarco com destino ao himeneu, com Jesus Cristo como padrinho.

Eu não sou mais prisioneiro da minha razão. Eu disse: Deus, eu almejo a liberdade na salvação; como buscá-la? As frivolidades me abandonaram. Inúteis tornaram-se a devoção e o amor divino. Não me faz falta o século dos corações sensíveis. A cada qual sua razão, desprezo e caridade: eu retenho meu lugar nos píncaros desta angelical escala do bom senso.

Quanto à bondade estabelecida, doméstica ou não... não, eu não posso mais. Dissipo-me demais, sou frágil demais. A vida frutifica pelo trabalho, velha e boa verdade: já a minha não é suficientemente pesada. Ela evola e paira acima da ação, este estimado aspecto do mundo.

Vejam só como já estou virando uma meninota, perdendo a antiga coragem de amar a morte!

Se Deus me concedesse a calma celeste, aérea, a prece - como aos antigos santos. - Os santos! os fortes! os anacoretas! os artistas de verdade, hoje inúteis!

Farsa contínua! Minha inocência me faria chorar. A vida é uma farsa que todos devem sustentar.


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Basta! Eis a punição. - Em marcha!

Ah, os pulmões queimam, as têmporas estalam! a noite revolve-se nos meus olhos, impelida por este Sol! o coração... os membros...

Para onde seguimos? Ao combate? Estou frágil! os demais avançam. As ferramentas, as armas... o tempo!...

Fogo! o fogo me envolve! Lá! Lá, onde me rendo. - Covardes! - Eu me mato! Me atiro e me espatifo sob os pés da cavalaria!

Ah!...

- Hei de me acostumar.

Será esta a vida francesa, a vereda da honra!

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Segundo fragmento de "Une saison en enfer" (Uma estadia no inferno), publicado em 1873, dois anos depois de desmantelada a Comuna de Paris. Traduzido por Geni a partir da edição Rimbaud - poésie complètes. Le livre de Poche. Librairie Générale Française, 1984.

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