domingo, 28 de fevereiro de 2010

Heiner Müller - A libertação de Prometeu




Abaixo, poema de Heiner Müller. Trata-se de um excerto de "Zement", extraído de Geschichten aus der Produktion 2, Rotbuch/Verlag der Autoren, 1979, pp-84-86. A versão em português foi transcrita a partir da tradução de Walter Schorlies e faz parte da coletânea de textos teatrais, contos, anotações, poemas e peças do autor chamada Medeamaterial e outros textos, publicada pela Paz e Terra em 1993.


A libertação de Prometeu

Prometeu, que entregou o raio aos homens,
mas não lhes ensinou
como usá-lo contra os deuses,
porque participava das refeições dos deuses,
as quais,
divididas com os homens,
ficariam menos abundantes,
foi, por causa da sua omissão,
por ordem dos deuses,
por Efesto, o ferreiro,
fixado ao Cáucaso,
onde uma águia de cabeça de cão
comia diariamente
do seu fígado, que crescia sem cessar.
A águia, que o tomou por um pedaço
de rocha
parcialmente comestível,
capaz de pequenos movimentos
e de cantigas dissonantes
especialmente quando se comia dela,
defecou também sobre ele.
As fezes eram seu alimento.
Ele as passava adiante,
transformadas em suas próprias fezes,
para a pedra debaixo de si,
de maneira que,
três mil anos depois,
quando Héracles, o seu libertador,
subia a montanha despovoada,
já podia enxergar o algemado,
refletindo o brilho alvo das fezes da ave,
de uma longa distância,
mas,
repelido repetidamente
pelo muro do fedor,
circunvolteou a montanha por mais três mil anos,
enquanto a cabeça de cão
continuava a comer o fígado do algemado
e o alimentava com suas fezes,
de maneira
que o fedor aumentava
na mesma medida
em que o liberador se acostumava a ele.
Finalmente,
beneficiado
por uma chuva
que durou quinhentos anos,
Héracles pôde se aproximar
a uma distância de tiro.
Neste procedimento, ele tapava o nariz com uma mão.
Três vezes não acertou a águia
porque ele,
atordoado pela onda do fedor,
que caía sobre ele
quando tirava a mão do nariz
para retesar o arco,
fechava os olhos involuntariamente.
A terceira flecha feriu o algemado levemente no pé esquerdo,
a quarta matou a águia.
Contam
que Prometeu chorava alto por causa da ave,
sua companheira de três mil anos
e seu sustento por duas vezes mil.
Devo comer as suas flechas,
ele gritava,
esquecendo de que conheceria outros alimentos:
Você sabe voar,
camponês,
com seus pés de bosta?
E ele vomitava
por causa do cheiro do estábulo que se fixara em Héracles
desde que ele limpou os estábulos de Augias,
porque a bosta fedia até os céus.
Coma a águia, disse Héracles,
mas Prometeu não conseguia captar
o sentido de suas palavras.
Também sabia muito bem
que a águia fora a sua última ligação com os deuses,
e que suas bicadas diárias
eram a memória deles nele.
Mais ágil do que nunca em suas correntes,
ele xingou seu libertador de assassino,
e tentou cuspir em sua cara.
Héracles,
curvando-se de nojo,
procurava enquanto isso as algemas
com as quais o furioso estava ligado a sua prisão.
O tempo, o clima e as fezes haviam tornado
carne e metal indistinguíveis
e ambos da pedra.
Afrouxados pelos movimentos violentos do algemado,
eles tornaram-se, então, reconhecíveis.
Constatou-se que eles foram corroídos pela ferrugem.
Somente no sexo a corrente juntou-se à carne,
porque Prometeu, ao menos
nos primeiro dois mil anos na pedra,
de vez em quando ainda se masturbava.
Mais tarde,
provavelmente
ele também esquecera o seu sexo.
Da libertação ficou uma cicatriz.
Facilmente
Prometeu teria podido libertar-se, ele mesmo,
caso não tivesse tido medo da águia,
sem armas e exausto dos séculos
como estava.
Que ele tinha mais medo da liberdade
do que da ave,
mostra seu comportamento durante a libertação.
Gritando e espumando de raiva,
com dentes e unhas
defendeu suas correntes
contra a investida do libertador.
Liberado,
de quatro sobre as mãos e os joelhos
chorando na tortura do movimento
com seus membros entorpecidos
ele gritou por um lugar tranquilo na pedra,
debaixo das asas da águia,
sem nenhuma mudança do local
além das decretadas pelos deuses
através de terremotos
ocasionais.
Mesmo quando já podia andar erguido
opôs-se
à descida
como um ator
que não quer sair de seu palco.
Héracles teve de carregá-lo nos ombros
montanha abaixo.
Mais três mil anos demorou a descida até os homens.
Enquanto os deuses arrancavam a montanha do chão,
de maneira que a descida
parecia mais uma queda
por causa do turbilhão das pedras,
Héracles carregava sua presa preciosa,
aconchegada a seu peito, como uma criança,
para que não sofresse danos.
Pendurado no pescoço do libertador,
Prometeu indicava-lhe a direção dos projéteis,
com voz baixa,
de modo que eles puderam evitar a maioria deles.
Nesse entretempo ele reafirmava,
gritando alto contra o céu
escurecido pelo turbilhão da pedras,
a sua inocência da libertação.
Seguiu-se o suicídio dos deuses.
Um a um, jogavam-se do seu céu,
sobre as costas de Héracles
e esmagavam-se nas pedras.
Prometeu esforçou-se
para voltar a seu lugar no ombro do libertador,
e assumiu a postura do vencedor,
que sobre o cavalo encharcado de suor
cavalga de encontro ao júbilo da população.

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